quarta-feira, 7 de outubro de 2009

EDUCAÇÃO PATRIMONIAL

O que é Educação Patrimonial

A questão patrimonial no Brasil ganhou relevância no cenário intelectual, artístico, literário e acadêmico por volta da década de 1920, em meio à busca por marcos fundadores e identitários da nação brasileira. No âmbito artístico essa busca ganhou maior visibilidade na Semana de Arte Moderna de São Paulo, ocorrida em 1922; ano da comemoração do centenário da Independência do Brasil. Ao menos no plano do desejo, a Semana de Arte Moderna pretendia ser o momento de afirmação de valores/expressões estético/artísticos efetivamente nacionais, desvinculados dos ditames culturais estrangeiros, notadamente europeus.

Nesse contexto de procura das raízes nacionais também ocorre, neste início de século, em 1924, a viagem a Minas Gerais de um grupo de intelectuais e artistas modernistas, tendo à frente Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral e Blaise Cendrars. Aqui, encantam-se com as construções coloniais, em especial as de Ouro Preto e Mariana. A viagem gera, entre outros frutos, artigos e correspondências nos quais se discute a defesa da preservação daquilo que seria, para eles, a genuína expressão da alma e criatividade brasileiras.

Não por acaso, Mário de Andrade é incumbido pelo governo federal, da redação de um anteprojeto de lei para a criação de um órgão responsável pela preservação do patrimônio histórico e artístico brasileiro; ponto de partida para a criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), bem como, em 1937, pela elaboração do decreto-lei nº 25/1937, que versa sobre os processos de tombamento do patrimônio brasileiro.

Talvez pela premência da salvaguarda, pelo predomínio de determinados profissionais ou pela escolha proposital daqueles “patrimônios” considerados significativos da história e da arte nacionais, os profissionais recrutados para a área da preservação voltaram sua atenção, de maneira especial, para as edificações — no jargão da área, os monumentos de “pedra e cal” — , objetos e locais que, no entendimento desses profissionais, carregavam simbólica e concretamente, a herança brasileira; portadores de relevância histórica para a nação. Relevância que tinha como critérios norteadores preponderantemente a excelência artística, arquitetônica e estética e, os de genialidade e criatividade.

Nesse sentido, museus foram criados com o objetivo de reunir, expor e divulgar estes objetos-símbolo. O Museu da Inconfidência em Ouro Preto, de iniciativa do governo federal e o Museu Arquidiocesano de Mariana são apontados como iniciativas dessa natureza e até hoje considerados os mais importantes acervos da história e da arte coloniais mineiras. Neles, esses objetos resignificaram, transformando-se em peças dignas de serem observadas, admiradas, cobiçadas: puros espaços de contemplação.

Sob essa mesma perspectiva Ouro Preto e Mariana, por exemplo, tiveram seus centros urbanos tombados no conjunto e algumas de suas edificações mereceram, igualmente, o tombamento individual, como a capela da Ordem Terceira de São Francisco de Assis em Ouro Preto, considerada pelos historiadores da arte a obra-prima do chamado “estilo colonial mineiro” e de seu artista maior: Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho. Processo esse que se repetiu país afora com outros artistas, edificações e objetos também eleitos pelos especialistas, como representativos dos locais e momentos-força que se queria guardar e reverenciar.

Em torno da década de 1980 profissionais da área de preservação como arquitetos, historiadores e museólogos, ocuparam sua atenção com outras preocupações. Entre essas preocupações estava a necessidade de ampliar o sentido e o uso dos equipamentos museológicos e dos espaços urbanos e arquitetônicos considerados patrimônio para além do seu sentido tradicional enquanto espaço de contemplação e local de guarda empoeirada de “coisas velhas”, dotando-os de uma função educativa dinâmica. Para tanto, alguns museus incorporaram aos seus quadros profissionais da área de Educação, responsáveis pela criação dos setores pedagógicos dos museus, que teem como objetivo a elaboração de projetos voltados para a comunidade do seu entorno, em especial a população estudantil.

As próprias exposições também adquiriram novos enfoques visando acrescentar aos objetos expostos por sua beleza, raridade, riqueza, excentricidade e antiguidade a dimensão do conhecimento. A partir de então ganha força a concepção de que os objetos museológicos devem proporcionar ao visitante a possibilidade de compreensão da época na qual foram confeccionados, seus usos e significado para a sociedade que o gerou e seus resignificados ao longo do tempo. Com isso o objeto-monumento, ou seja, o objeto como valor de culto ao passado, torna-se objeto-documento; porta de acesso ao passado; à compreensão daquilo que nos formou/forjou como sociedade, comunidade, grupo social ou étnico. Essa postura ou diretriz museológica vem, aos poucos, disseminando-se pelo país. Vale lembrar que alguns poucos arquivos históricos também veem implementando ações educativas junto aos corpos docente e discente dos ensinos fundamental e médio, democratizando o acesso à documentação sob sua guarda.

Outra preocupação que se instalou na década de 1980 girava em torno da abrangência do próprio conceito de patrimônio, na tentativa de identificar, compreender e preservar a herança complexa e diversa da dinâmica social brasileira em suas múltiplas facetas. Como desdobramento dessas reflexões os estudiosos e pesquisadores, acompanhando tendências internacionais, adotaram o conceito mais amplo de patrimônio cultural, que veio substituir o de patrimônio histórico e artístico. De acordo com a Declaração de Caracas (1992), “o patrimônio cultural de uma nação, região ou de uma comunidade é composto de todas as expressões materiais e espirituais que o constituem, incluindo o meio ambiente natural.” Ou seja, patrimônio cultural é tudo aquilo que exemplifica os fazeres e saberes humanos; portanto, não mais apenas aquilo que é belo, antigo, raro, excêntrico ou representante de um grupo social dominante. Valoriza-se daqui por diante tudo aquilo que expressa o modo de viver e conviver dos grupos sociais, no seu cotidiano: seus hábitos, crenças, afetos, trabalho, festejos, entre outros. Enfim, aquilo que os singulariza ou, ao contrário, que os aproxima, conformando a identidade cultural de uma determinada comunidade na sua relação com outras comunidades ou a sociedade de maneira geral.

Conceito esse assumido pela Constituição Brasileira de 1988, nos capítulos dedicados à preservação, onde também se abre à sociedade o direito e o dever de eleger e proteger aquilo que ela considera como patrimônio cultural; tornando-se, assim, parceira fundamental dos órgãos voltados para a preservação. A sociedade torna-se, então, protagonista dessas escolhas, por intermédio dos conselhos e institutos municipais voltados para a preservação.

Seguindo essa orientação o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) elaborou a política de preservação cultural que vigora no momento e norteia a atuação dos institutos e conselhos estaduais e municipais. Para estabelecer sua metodologia de trabalho, o IPHAN elaborou uma tipologia de bens culturais. Assim, o patrimônio cultural compreende o patrimônio material e o patrimônio imaterial ou intangível.

A categoria patrimônio material compreende dois tipos de bens culturais: os bens culturais imóveis e os bens culturais móveis. Bens culturais imóveis são as edificações civis, oficiais, militares e religiosas, bem como os sítios arqueológicos e históricos que guardam características de determinados momentos históricos; seja de interesse da nação, do estado ou de um município ou região. Bens culturais móveis englobam, por exemplo, adornos, vestuário, instrumentos de trabalho, objetos e paramentos litúrgicos, documentos, fotografias, entre outros.

O patrimônio imaterial, por sua vez, foi categorizado, para efeito de registro, em cinco modalidades que se pretendem amplas o suficiente para abarcar a multiplicidade e diversidade das manifestações culturais. São elas:
• Formas de expressão: são as manifestações culturais como cantos e formas de comunicação dos mais variados tipos como os toques dos sinos (em processo de registro pelo IPHAN) e línguas de povos ou grupamentos étnico e sociais em extinção, como alguns idiomas indígenas;
• Celebrações: são as manifestações culturais como a Folia de Reis, o Congado, as novenas;
• Ofícios: são as técnicas do fazer, como a confecção de panelas de barro, técnicas construtivas como o pau-a-pique e a cantaria, a confecção de jóias como o coco e ouro de Diamantina e o queijo do serro; esse último, já objeto de registro pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (IEPHA-MG);
• Lugares: mais do que as edificações e espaços urbanos característicos e singulares de uma região, são locais característicos pelo uso que deles faz a população enquanto espaços de vivência, encontro e afeto; de que é exemplo o Mercado Ver-o-Peso de Belém do Pará;
• Saberes: são todos aqueles saberes tradicionais que ainda se conservam, como a “benzeção” e o conhecimento de ervas e raízes medicinais.

Vale lembrar que os primeiros registros de bens imateriais dentro dessa concepção metodológica são ainda recentes, datando de 2005. Portanto, é um campo a ser explorado e estudado não apenas pelos órgãos preservacionistas, mas, principalmente, pela sociedade, que deve eleger aquilo que representa o seu passado e a sua tradição, nas suas variadas dimensões.

A educação patrimonial, prevista na Lei de Diretrizes e Bases da Educação como tema transversal, tem como objetivo capacitar alunos e professores a conhecer e compreender a dinâmica cultural, no seu processo de permanência, mudança e transformação, que permeia o meio no qual se inserem, auxiliando-os a compreender sua própria identidade cultural ao mesmo tempo em que valorizam e respeitam a identidade cultural do outro, como prevê a convivência democrática. Com isso, pretende-se que alunos e professores se apropriem efetivamente do legado cultural e, enquanto cidadãos atuem no sentido de preservar e recuperar os valores e marcas que constituem seu patrimônio pessoal e coletivo.

Projetos na área de Educação Patrimonial são meio fundamental para a formação dos alunos na prática cidadã e no auto-conhecimento, ao possibilitar-lhes a compreensão do contexto cultural no qual vivem e agem; dotando-os de instrumentos capazes de auxiliá-los na definição e reconhecimento daquilo que compõe sua identidade cultural. É meio eficaz na construção de um conhecimento significativo pois, por seu intermédio, e trabalhado de maneira transdisciplinar, potencializa e concretiza conteúdos disciplinares e educacionais, bem como competências e habilidades desejáveis ao estudante tais como: capacidade de observação, questionamento, pesquisa e análise da realidade vivida por eles; capacidade de compreensão crítica de outras realidades; atitudes proativas na construção de novas/outras formas de sociabilidade baseadas no respeito a si próprio e ao outro, entre outros.

Além disso, projetos na área de Educação Patrimonial podem promover maior interação entre a escola e a comunidade na qual se insere; com isso, a escola adquire ou reforça laços de convivência. Reforça, igualmente, seu caráter enquanto espaço dinâmico e ativo da construção do saber e da atuação cidadã e enquanto local privilegiado de troca de conhecimentos, experiências e vivências.


Josanne Guerra Simões


Bibliografia:
CANCLINI, N. G. O patrimônio cultural e a construção imaginária do nacional. Revista do Patrimônio Histórico Artístico Nacional, n.23, p.94-115, 1994.

FUNARI, Pedro Paulo; PELEGRINI, Sandra de Cássia Araújo. Patrimônio Histórico e Cultural. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. (col. Ciências Sociais Passo a Passo).

LE GOFF, Jacques. Documento/monumento. In: ROMANO, Ruggiero (dir.). Memória/História. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1984. p. 95-106. (Enciclopédia Einaudi, 1).

LEMOS, A.C. O Que O que é Patrimônio Histórico. São Paulo: Brasiliense, 1981. (col. Primeiros Passos).

PELEGRINI, Sandra. Cultura e natureza: os desafios das práticas preservacionistas na esfera do patrimônio cultural e ambiental. Revista Brasileira de História, jun. 2006, v.26, no.51, p.115-140.

SÃO PAULO (cidade). Secretaria Municipal de Cultura. Departamento de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. O direito à memória: patrimônio histórico e cidadania. São Paulo: DPH, 1992.

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